Nas duas últimas semanas o Hospital Municipal de Contagem foi cenário de histórias de amor e doação. Se para cinco famílias o momento foi de muita perda e dor, para outras dez o gesto significou uma nova chance de vida. A família de um paciente doou o fígado, outras cinco doaram córneas.
Cenas como essas sempre comovem pela grandeza do gesto. O Brasil possui o maior sistema público de transplantes no mundo. Além disso, o País é o segundo em número absoluto de transplantes, ficando atrás somente dos Estados Unidos. O Sistema Único de Saúde - SUS é responsável pelo financiamento de cerca de 92% desses procedimentos.
O Hospital Municipal de Contagem é uma das instituições responsáveis pela captação de órgãos em Minas Gerais. Segundo a Associação Brasileira de Transplante de Órgãos - ABTO existe, no Brasil, cerca de 400 equipes médicas cadastradas para realizar transplantes de órgãos e tecidos, como rim, rim/pâncreas, fígado, coração, pulmão, medula óssea e córnea, entre outros.
Renata Graziela Soares, médica da Comissão Intra-hospitalar de Doação de Órgãos e Tecidos para Transplantes - CIHDOTT do Hospital Municipal, não economiza elogios para a equipe da instituição envolvida com todas as etapas do processo de captação. “São cerca de 100 pessoas. Médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais e fisioterapeutas, entre outros profissionais igualmente importante para o sucesso do procedimento”, destaca.
Quando os profissionais não abraçam a instituição e não se sensibilizam para a necessidade de orientar as famílias quanto à possibilidade de doação dos órgãos, o sucesso não é alcançado. Com o salário dos médicos em atraso e a falta de insumos e medicamentos básicos, até mesmo, antibióticos, devido à falta de pagamento aos fornecedores, a equipe estava trabalhando insatisfeita e no limite. Três meses após a intervenção feita pela Prefeitura no Complexo Hospitalar do Município esses problemas estão praticamente solucionados. Até novembro todos os pagamentos de serviços médicos estarão quitados e mais de 80% da dívida com os fornecedores será paga. Com isso, a equipe está mais segura e motivada para realizar o seu trabalho.”
Momento difícil
O momento da doação é sempre traumático. João Valle Maurício Netto, médico intensivista do Hospital Municipal, afirma que o mais difícil é fazer com que a família compreenda que não há mais vida naquele corpo. Nem mesmo a experiência acumulada, lidando diariamente com o limite entre a vida e a morte, facilita esse contato. “O momento é de muita dor”. Aline Siqueira Melo Machado, também intensivista, concorda. “A equipe tenta trazer para a família a ideia da ressignificação. Tentamos mostrar a possibilidade da continuidade daquela vida em outro corpo. Infelizmente, quanto mais jovem o paciente, mas difícil é a decisão da família”, afirma Aline Machado, que lamenta a pouca efetividade das campanhas. Segundo ela, as campanhas precisam ter foco também no que é a morte encefálica. “Ainda há muita desinformação sobre isso”.
Caminho longo
O caminho percorrido da captação ao transplante é longo. Tudo começa quando o paciente é declarado com morte cerebral. Isso só ocorre depois de três exames clínicos, um teste de apneia e um eletroencefalograma. Etapa concluída, a família é comunicada, momento em que é feito o pedido de doação dos órgãos. Com a concordância dos familiares, o paciente continua a ser monitorado e mantido vivo para preservar a qualidade do órgão que será doado.
É ai que entra em cena a equipe do MG Transplantes, responsável por fazer outra série de exames, entre eles o de Covid. Se os exames confirmam que os órgãos estão saudáveis e podem ser transplantados, é feita a oferta para a captação de receptores em fila única. Identificado o receptor compatível, a equipe de captação retira o órgão do doador. Fígado, coração, pâncreas, córneas, rim e pulmão são imediatamente encaminhados ao hospital no qual será feito o transplante. Todo esse processo leva de 24 a 48 horas.
A enfermeira Ildilene Ferreira Donato que, juntamente com a também enfermeira Cíntia Oliveira de Souza, faz parte da CIHDOTT, sente-se recompensada com o trabalho que faz. “Aqui no Hospital Municipal cuidamos do órgão que vai salvar a vida de outra pessoa”, afirma, assegurando que esse cuidado contribui decisivamente para o sucesso do transplante.
Impacto da Covid
Um doador pode doar vários órgãos e tecidos. Se for levado em consideração apenas os órgãos, uma única pessoa pode salvar até dez pessoas que estão na fila de espera. Quando se trata de tecidos, - pelo, ossos, tendões e córneas - esse número sobe para dezenas de pessoas. Por isso é muito importante que a taxa de doadores não caia.
Mas, infelizmente, esse é um dos impactos da pandemia de Covid. Renata Soares admite que mesmo com a dedicação da equipe do Hospital Municipal, reproduz o cenário vivido no restante do País, confirmando que a pandemia de Covid comprometeu, sim, o volume das doações em 2020 e 2021. “Com a queda nas doações perdemos muitas pessoas que estavam na fila”, lamenta. A médica aponta outro impacto negativo. “A fila para o transplante de córneas voltou a crescer. Aumentou muito”.
Segundo Renata, com o protocolo criado para o enfrentamento da pandemia, todo paciente com quadro respiratório sugestivo de uma infecção viral, é automaticamente excluído. Aqueles que comprovadamente têm a infecção também são excluídos, pelo risco de transmissão da doença para o receptor. E mais, com o isolamento social, ocorreu também uma queda expressiva de cerca de 45% no número de traumatismos e acidentes, fator que impactou diretamente o número de doações.
Dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde - OMS apontam que desde o primeiro óbito por Covid-19, no Brasil, no dia 17 de março, até o dia 30 de junho de 2020, ocorreu uma redução de 33% da doação de órgãos, 49% no número de transplantes de todos os órgãos e 45% em inscrições em lista. Quando o cenário é analisado por órgão, o pulmão foi o mais impactado (85%), seguido do pâncreas (65%), coração (62%), rim (50%) e fígado (39%).
Desafios
O Brasil é o segundo país no mundo em número absoluto de transplantes, os números poderiam ser ainda melhores se os familiares autorizassem as doações. Atualmente, cerca de 30% das famílias recusam a retirada de órgãos para a doação. No Brasil, só quem pode autorizar a doação de órgãos são os parentes até segundo grau, ou seja: pai ou mãe, filhos, avós, netos ou cônjuges. Por isso, é tão importante expressar, para os parentes mais próximos, a vontade de ser um doador.
Tipos de doadores
Há três tipos de doadores, o doador em Morte Encefálica, o doador vivo e o doador de coração parado. É importante comunicar à família o desejo de ser doador, não é necessário deixar nada por escrito. Podem ser doados os seguintes órgãos e tecidos: córneas, coração, pulmões, rins, fígado, pâncreas, intestinos, pele e tecidos musculoesqueléticos. O doador vivo é qualquer pessoa saudável que concorde com a doação, sem comprometimento de sua saúde e aptidões vitais. Por lei, podem ser cônjuges e parentes até o quarto grau.
Os doadores vivos podem doar um dos rins, a medula óssea, uma parte do fígado e uma parte do pulmão. O potencial doador vivo também deve ser encaminhado a um Centro Transplantador, para que se verifique as possibilidades do transplante. A retirada de tecidos e órgãos de doador falecido para transplantes depende da autorização do cônjuge ou parentes até o segundo grau, que são consultados após o diagnóstico de morte encefálica (parada total e irreversível do cérebro, atestado por diversos exames).
Quando o paciente está em quadro de morte encefálica, podem ser retirados todos os órgãos passíveis de doação. Com o coração parado é possível doar apenas as córneas, que podem ser retiradas num prazo de até seis horas. Para entrar na lista de receptores de órgãos e transplante é preciso ser encaminhado por um médico para um dos Centros Transplantadores. O paciente é submetido a vários exames, que variam conforme o caso clínico, para que seja comprovada a necessidade do transplante.
Para a realização do transplante, há uma lista única do Estado de Minas Gerais, sob a responsabilidade do MG Transplantes, em que são observados vários critérios: urgência, compatibilidade de grupo sanguíneo, compatibilidade anatômica (tamanho do órgão e do paciente), compatibilidade genética, idade do paciente, tempo de espera, dentre outros critérios.
Repórter Gisele Bicalho