Pense em um local no qual a unidade básica de saúde funciona satisfatoriamente, mesmo em um contexto onde as políticas sociais universais sofrem cortes de verbas e questionamentos quanto à sua legitimidade: não, não se trata de um bairro na Suécia ou na Finlândia. É o bairro Icaivera, situado no distrito sanitário Vargem das Flores, uma região de alta vulnerabilidade social na qual cerca de sete mil pessoas vivem, como gestantes, idosos, crianças, doentes crônicos, enfim, pessoas comuns que vivem suas vidas e que esperam ser acolhidas e atendidas em suas necessidades relativas à saúde, um direito reconhecido pela lei brasileira.
Em setembro de 2017, a Unidade Básica de Saúde (UBS) Icaivera, que contava com apenas uma equipe de Estratégia de Saúde da Família (ESF), passou a atuar com duas equipes, atendendo ao que é preconizado pela Portaria nº 2.436, de 21/9/2017. O documento aprova a Política Nacional de Atenção Básica (PNAB), estabelecendo a revisão de diretrizes para a organização da Atenção Básica no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS).
Gabriela Marteleto, 22 anos, esteve na UBS Icaivera hoje, terça-feira (8), para tentar uma consulta com um clínico geral. Ela diz que não passava pela unidade desde o ano de 2015 e que não sabia das mudanças, mas que aprovou as modificações e que foi muito bem atendida. “Tem muito tempo que não me consulto no posto. Antes, dava uma confusão de gente na porta e era preciso chegar muito cedo para tentar agendar. Hoje, já achei mais organizado. Vim hoje de manhã e já fui atendida no mesmo dia. Aliás, fui muito bem atendida, e a médica com quem me consultei me fez perguntas boas, que nem o médico que me acompanhava quando eu tinha plano de saúde fez. Eu achei ótimo”, afirma Gabriela.
[caption id="attachment_8279" align="alignleft" width="300"] Mudança trouxe reflexo positivo[/caption]A médica Maria de Lourdes Chaves Salgado e Silva integra uma das equipes de ESF da UBS Icaivera. Ela conta que foi convidada para atuar na unidade em setembro do ano passado, quando teve início o processo de ampliação no âmbito da Saúde da Família na referida UBS. “Atuo em medicina de Saúde da Família há 20 anos. É um tipo de medicina que não é só curativa, é também preventiva. Atualmente, está crescendo o número de primeiras consultas, de pessoas que perderam o emprego ou o plano de saúde. Quando comecei a atuar nessa área, há duas décadas, havia aquelas pessoas que nem aceitavam a visita do agente de saúde. A gente nota que, com esse novo modelo, no qual existe uma busca ativa das pessoas, elas se aproximam mais dos profissionais de saúde. Isso cria vínculo, o que contribui para a prevenção e promoção à saúde e também para os tratamentos necessários. Hoje, as pessoas não só aceitam, mas também elogiam os serviços e participam do controle social. Elas frequentam o posto não somente porque estão doentes, mas também porque estão envolvidas em atividades de prevenção e promoção à saúde”, atesta a médica generalista.
O diretor do Distrito Sanitário Vargem das Flores, Flávio Luiz dos Santos, salienta que a ampliação da ESF na unidade Icaivera era uma demanda antiga da população, formada quase exclusivamente por usuários 100% SUS (não atendidos por planos privados de saúde). “Essa nova equipe era aguardada há 12 anos. O Conselho Municipal de Saúde local é muito ativo e as pessoas buscam exercer um efetivo controle social. A porcentagem de SUS-dependência na região é de 95%. A existência de equipamentos SUS na região é fundamental”, ressalta o diretor.
Ampliação da cobertura de ESF de 50,13% para 65,48%
O município de Contagem como um todo está passando por um processo de reorganização da Atenção Básica, principal porta de entrada e centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde (RAS). Nesse processo, a rede SUS/Contagem está se adequando à PNAB 2017 e buscando aprofundar a saúde como um direito de cidadania. Com isso, o modelo tradicional, concebido na década de 1970, que conta com alguns especialistas distribuídos de forma fragmentada e não integrada nas unidades de saúde, está sendo gradativamente substituído pela Estratégia de Saúde da Família (ESF).
O novo modelo atua a partir de uma agenda compartilhada e organizada em rede, em conformidade com as normas atuais do Ministério da Saúde (MS), e está sendo progressivamente ampliado em Contagem: no comparativo entre 2016 e 2017, a cobertura de Saúde da Família no município passou de 50,13%, para 65,48% (de 95 para 125 equipes).
Com a ESF, ocorre uma busca ativa das pessoas, por meio da visita de agentes comunitários de saúde (ACS) e da formação de vínculos com a comunidade, e o fluxo é estabelecido conforme as necessidades dos usuários e em territórios pré-estabelecidos. A ESF conta ainda com o apoio do Núcleo Ampliado à Saúde da Família (NASF), que inclui os seguintes profissionais: fonoaudiólogo, assistente social, fisioterapeuta, psiquiatra, ginecologista, pediatra, nutricionista, psicólogo e terapeuta ocupacional. A ESF tem entre seus pressupostos o reconhecimento da determinação social no processo saúde-doença e da saúde como um direito de cidadania.
Distrito Eldorado: 100% ESF
[caption id="attachment_8280" align="alignleft" width="300"] Dona Clélia Antônia Moreira aprova novo modelo[/caption]E não é só em regiões de alta vulnerabilidade que a mudança de modelo de assistência já mostra seus benefícios práticos: na UBS Eldorado, o processo de transição do modelo tradicional para ESF, que também começou em setembro do ano passado, já possibilitou que a unidade conte atualmente com três equipes de ESF, com um médico generalista durante todo o período de funcionamento (antes, havia um médico presente em só uma parte do dia) e com acolhimento de usuários e organização dos fluxos feitos pelas equipes de ESF. "A implementação das equipes de Nasf na unidade também já começou, e a expectativa é de que esses profissionais já atuem no atendimento à população a partir do próximo mês", menciona a gerente da UBS Eldorado, Larissa Santos Silva.
Clélia Antônia Moreira, 66 anos, aposentada, conta que mora na região do Eldorado desde que nasceu e que frequenta a UBS Eldorado desde os tempos em que a unidade localizava-se em outro imóvel. Ela também conta que nos anos em que ainda não havia SUS, que foi instituído somente com a Constituição Federal de 1988, o atendimento à saúde simplesmente não existia. “Antes do SUS, era um sufoco. Não tinha médico, não tinha remédio, não tinha nada. A gente tinha que ir para Belo Horizonte para conseguir atendimento. Depois, já com o SUS, as coisas foram melhorando. Agora, com a mudança para a ESF, está excelente. Melhorou a vacinação, o laboratório e o atendimento está excelente”, assegura a usuária da UBS.
A diretora do Distrito Sanitário Eldorado, Kelly Jordane Duarte Ribeiro, afirma que a população compreendida na área de abrangência do distrito é participativa e vem se engajando nas discussões sobre utilização do SUS e da efetivação da saúde como direito. “O distrito possui uma população de aproximadamente 130 mil pessoas, sendo o maior de Contagem. Os Conselhos Municipais de Saúde locais são ativos e as pessoas participantes são empoderadas. Muitos dos prontuários novos abertos são de pessoas que perderam seus planos de saúde, que estão vindo para o SUS e aprendendo a lidar com e a defender o sistema público de saúde. Estamos tendo uma resposta muito boa da população. Hoje, 100% das nossas unidades de saúde já migraram para a ESF”, explica a diretora.
O que diz a lei sobre a Atenção BásicaA PNAB/2017 estabelece, em seu Art. 2º, que “a Atenção Básica é o conjunto de ações de saúde individuais, familiares e coletivas que envolvem promoção, prevenção, proteção, diagnóstico, tratamento, reabilitação, redução de danos, cuidados paliativos e vigilância em saúde, desenvolvida por meio de práticas de cuidado integrado e gestão qualificada, realizada com equipe multiprofissional e dirigida à população em território definido, sobre as quais as equipes assumem responsabilidade sanitária. A Atenção Básica será a principal porta de entrada e centro de comunicação da Rede de Atenção à Saúde (RAS), coordenadora do cuidado e ordenadora das ações e serviços disponibilizados na rede. A Atenção Básica será ofertada integralmente e gratuitamente a todas as pessoas, de acordo com suas necessidades e demandas do território, considerando os determinantes e condicionantes de saúde”. Um dos objetivos da portaria é o de superar compreensões simplistas sobre o processo saúde-doença e a dicotomia entre assistência e promoção da saúde. A melhoria das condições de saúde da população possui múltiplos fatores condicionantes e determinantes, e a intenção da portaria é de abordar essa multiplicidade no âmbito da Atenção Básica.