A garantia ao atendimento à saúde é uma prerrogativa de todo cidadão e toda cidadã brasileiros, respeitando-se suas especificidades, como aquelas relacionadas à orientação e práticas afetivas e sexuais de transexuais, pessoas que não se identificam com o gênero biológico e se vestem e se comportam como pessoas de outro sexo. Trata-se de um grupo que vive sob condições de violência, vulnerabilidade social, discriminação e estigma que, portanto, possui necessidades e demandas em saúde muito específicas e complexas. As experiências de preconceito e exclusão comuns às trajetórias das pessoas trans acabam por dificultar a iniciativa de busca por equipamentos de saúde, incluindo aqueles relacionados ao diagnóstico e tratamento de Infecções Sexualmente Transmissíveis (IST).
Com o objetivo de promover o acesso aos serviços do Centro de Testagem e Aconselhamento (CTA) por pessoas trans, esclarecer dúvidas e falar sobre prevenção e tratamento das ISTs, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) promoveu uma roda de conversa em uma casa-pensão na região do Industrial. A visita à casa aconteceu na quinta-feira (12). Participaram do encontro seis das aproximadamente 12 trans, oriundas de diferentes lugares para além de Minas Gerais, como Alagoas, Pernambuco e Sergipe, que moram lá e trabalham na cidade como profissionais do sexo. A participação na roda de conversa se deu de forma voluntária.
O diálogo foi mediado por Simone Maia e Cláudia Oliveira, aconselhadoras do CTA de Contagem. A solicitação da visita de integrantes do CTA partiu de Giselle Rodrigues, que acolhe as meninas na casa. A ação foi viabilizada graças à articulação e iniciativa do coordenador do IST / Aids do Centro de Consultas Especializadas (CCE) Iria Diniz, Paulo Henrique Teixeira Belmiro.
Na ocasião, houve também distribuição de preservativos e de material informativo sobre a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), que consiste no uso de medicamentos antiretrovirais após um possível contato com o vírus HIV em situações como violência sexual, relação sexual desprotegida e acidente ocupacional, e sobre a Profilaxia Pré-Exposição (PrEP), uso preventivo de medicamentos antes da exposição ao vírus do HIV. Já na sexta-feira (13), a equipe do CTA voltou à casa-pensão para fazer a testagem nas trans que quiseram fazer o teste.
O coordenador do programa IST / Aids, Paulo Henrique, comenta sobre a especificidade da ação. “É uma ação de promoção à saúde voltada a um público muito específico, de difícil acesso e vulnerável, que precisa de muita atenção e um olhar diferenciado”, afirma o coordenador.
Em muitos casos, o acesso aos serviços de saúde pelas trans vai se dar apenas via unidade de urgência, para lidar com estados já avançados da Aids. A aconselhadora Cláudia Oliveira relata que a procura das trans pela testagem é baixa. “Já temos no Serviço de Atendimento Especializado (SAE) esse público em tratamento, mas quando elas chegam ao SAE já houve a infecção. Viemos aqui para tentar promover o acesso antes que aconteça a contaminação”, argumenta Cláudia.
Contudo, em meio a histórias repletas de vivências como segregação, o estigma ligado à orientação e práticas afetivas e sexuais das trans e à infecção pelo vírus, há também narrativas de superação. “Há um paciente em tratamento lá no SAE que diz que o fato dele ter conseguido transitar na saúde por causa do HIV fez com que ele conseguisse transitar no espaço público”, assevera a aconselhadora Simone Maia.
Estigma e preconceito
Aos poucos, no decorrer da conversa da quinta-feira na casa-pensão da Giselle, vão aparecendo as dúvidas e as provas de que o estigma e a discriminação seguem como obstáculos para a prevenção e tratamento do HIV. No Brasil é possível contar com o acesso gratuito aos serviços de saúde relacionados ao HIV, que incluem prevenção, testagem, aconselhamento e tratamento. Na farmácia do SAE de Contagem, atualmente, cerca de 1.200 pessoas fazem tratamento regular mensal, retirando medicamento para controle e tratamento.
Entretanto, como aponta o Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (UNAIDS) “o estigma e a discriminação prejudicam os esforços no enfrentamento à epidemia do HIV, ao fazer com que as pessoas tenham medo de procurar por informações, serviços e métodos que reduzam o risco de infecção, e também de adotar comportamentos mais seguros, com receio de que sejam levantadas suspeitas em relação ao seu estado sorológico”, diz a organização em publicação de 4/10/2017.
“Temos vergonha”, “não sabemos onde é”, “a gente não quer procurar”, “tem gente que sabe que tem e fica espalhando o vírus”, “eu prefiro não saber” “já vi uma bicha que era linda e, depois que descobriu que tinha o negócio, a bicha acabou” são algumas das respostas à pergunta sobre o porquê de as trans não aparecerem no CTA para se testar. “Como a gente é profissional do sexo, às vezes faz com camisinha, às vezes faz sem, se o cliente pede, ou se tem alguma química”, revela uma das meninas. “Eu não sei o que é um hospital há anos. Acho que só vou quando estiver naquele lugar”, desabafa outra.
O médico Leandro Cury de Lima Sousa, um dos infectologistas do Programa IST /Aids, confirma que as trans são um grupo com alta vulnerabilidade para o HIV. “É um grupo em que os índices de contágio ainda crescem, e isso é verificado em todo o Brasil. Embora as trans estejam sob condições de vulnerabilidade em virtude de dois fatores de risco, por serem transexuais e, em alguns casos, também profissionais do sexo, contam com pouca avaliação médica e não se testam com frequência. São um grupo que tem indicação para fazer uso da PrEP. Mas, na rotina do consultório, tenho atendido a muitas pessoas, de todas as idades, condutas sexuais e gêneros. É preciso que todos se previnam”, adverte o infectologista.
De acordo com o setor de Epidemiologia da Secretaria Municipal de Saúde (SMS), em 2017, foram notificados 144 casos de HIV (sigla para o vírus causador da Aids) e 59 casos de Aids (quando o conjunto de sintomas e eventos que ocorrem devido à infecção por HIV se manifesta. O vírus pode passar por um processo de incubação de tempo variável antes do surgimento dos sintomas da doença). Já em 2018, de janeiro a junho, foram 53 casos de HIV confirmados e 20 casos de Aids. Todos os casos são confirmados em adultos (acima de 13 anos de idade).
Nome social para atendimento nas unidades de saúde
O Ministério da Saúde (MS) garante aos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS) o uso do nome social no cartão de identificação de usuários, conforme Portaria n° 1820, de 13 de agosto de 2009. O respeito do uso nome social e à forma como a pessoa se autorrefere e se autoidentifica é uma das condutas muito importante para a prestação de acolhimento humanizado das travestis.
CTA de Contagem - SAE / CCE Iria Diniz
O CTA funciona de segunda a quinta-feira, com distribuição de senhas às 7h30 e às 13h. O endereço é avenida João César de Oliveira, nº 2.889, no Eldorado. É solicitado um documento com foto. O CCE Iria Diniz conta com três médicos infectologistas-adulto e um médico infectologista-infantil.